quarta-feira, março 19, 2008

Identidade indelével

Certa vez, durante seu programa na Rede Globo, Jô Soares entrevistou um violinista que imigrou do Leste Europeu para o Brasil durante a II Guerra Mundial porque sua família havia sido destroçada pelo regime soviético. Obviamente, esse imigrante criticou Stalin e o chamou daquilo que ele foi: genocida. Então, Jô entrou na conversa e disse que é um absurdo chamar Stalin de comunista. Aliás, Jô falou isso dando a entender que o socialismo nada tem a ver com as inúmeras atrocidades cometidas por Stalin e pelos camaradas do Partidão e é uma ideologia de resultados sacrossantos.

Porém, apesar da ladainha do comunófilo Jô, Stalin é uma pessoa cuja biografia literalmente personifica a história do movimento comunista, devido à sua trajetória revolucionária - no pior sentido possível do termo.

Portanto, dizer que Stalin não era comunista é o mesmo que dizer que o papa não é católico.

domingo, março 16, 2008

A cilada do vale-tudo

O relativismo absoluto é a tirania do vale-tudo. Essa afirmação, que a princípio pode parecer uma contradição de termos, é endoçada pelo fato empiricamente demonstrável de que qualquer liberação total da conduta humana resulta, mais cedo ou mais tarde, no império da libertinagem.

Você certamente conhece uma música de Tim Maia em que ele cantava: "Vale tudo! Vale tudo! Só não vale dançar homem com homem e nem mulher com mulher!". Pois bem: essa frase é, metaforicamente, um exemplo típico de que a limitação moral da conduta humana é tão inerente à sua natureza quanto as nossas necessidades biológicas, tais como a fome e o sono, por exemplo.

Certa vez, um antropólogo disse na TV que as pessoas de bom caráter não devem usar a palavra "raça", pois, segundo ele, trata-se de um termo altamente pejorativo que deve ser substituído pela palavra "etnia". Até aí, nada de muito grave. Porém, logo depois, ele levantou a bandeira do relativismo cultural, dizendo que o costume de certas tribos da África Central de cortar o clitóris das mulheres para que elas não tenham orgasmos e não traiam seus maridos é uma manifestação cultural válida e digna de respeito. Com base nisso, pode-se chegar a duas constatações:

Primeira: há uma deformação monstruosa na hierarquia de valores desse cidadão, pois o uso ou não da palavra "raça" é algo infinitamente menos grave do que a remoção cirúrgica do clitóris de uma mulher, cujo termo técnico é "clitorectomia".

Segunda: ele demonstrou cabalmente que só é relativista quando lhe convém, pois não admite em hipótese alguma o uso da palavra "raça", mesmo que isso não seja nada perto da já mencionada clitorectomia.

Outro dia, num programa de rádio, um sociólogo fez várias afirmações que deram a entender que não há nada justo ou injusto; tudo é uma questão de em que lado você está. Porém, se vale tudo, um assassinato pode ser considerado um ato justo, pois o assassino pode alegar em sua defesa que a pessoa que ele matou merecia morrer, não é mesmo? Veja o tamanho da cilada em que esse sujeito poderia cair se alguém lhe dissesse isso em público!

O relativismo cultural só é possível quando acompanhado do relativismo moral, pois o julgamento de uma cultura, tanto isoladamente quanto em relação a outras culturas, só pode ser feito com base em valores morais dos quais os relativistas têm que abdicar em nome de uma visão de mundo "sem preconceitos". Entretanto, mais cedo ou mais tarde, a natureza humana acaba falando mais alto e destruindo qualquer possibilidade real de manutenção do relativismo absoluto. O motivo é simples: todos nós, sem exceção, somos contra algo; logo, nenhum de nós aceita tudo. Portanto, sempre haverá algo a que todo e qualquer relativista, por mais relativista que ache que é, será contra por razões morais, pois, como eu já disse, o senso de justiça é inerente à natureza humana.

Após a exposição desses argumentos, você deve ter percebido que o relativismo absoluto é uma cilada na qual os próprios relativistas sempre acabam caindo, mais cedo ou mais tarde, pois a imposição de limites morais à conduta humana é um procedimento imprescindível para a própria sobrevivência da nossa espécie, afinal, ninguém pode ter o direito de fazer tudo o que quiser. Hoje e sempre.

quinta-feira, março 13, 2008

As supostas profecias de Nostradamus

Sempre que o mundo é surpreendido por algum acontecimento, geralmente trágico, que causa mudanças drásticas na maneira como as pessoas encaram o futuro da humanidade, eis que surge um monte de gente afirmando categoricamente que Michel de Notredame, mais conhecido como Nostradamus, previu tal hecatombe.

Porém, um detalhe que quase ninguém percebe, por desconhecimento ou por desatenção, é o fato de que os textos cuja autoria é atribuída a Nostradamus são de uma linguagem poética tão vaga que, dependendo da interpretação que fizermos, qualquer coisa pode ter sido prevista por ele. Afinal, Nostradamus não escrevia suas supostas profecias numa linguagem clara e objetiva, e sim com uma afetação de poesia extremamente floreada. Assim sendo, sempre que algo de proporções mundiais acontece, os auto-proclamados intérpretes de Nostradamus lêem seus textos, interpretam livremente uma meia-dúzia de frases dele e fazem associações retroativas a respeito de coisas que já aconteceram. Mas quem disse que isso pode ser chamado de profecia? Desde quando um fato retroativamente apurado como previsto pode ser considerado uma previsão?

Analisemos essa suposta profecia: “O líder terceiro cometerá atos mais execráveis do que Nero. Quanto sangue de pessoas valentes fará correr! Ele reerguerá os fornos do sacrifício. A ‘Era de Ouro’ é uma era de morte. O novo potentado é um escândalo”. O que isso realmente quer dizer? Vários intérpretes atribuíram esses versos à Revolução Francesa. Alguns acham que ele falava sobre Hitler e a ascensão do nazismo. Mas a questão que vem à tona é: desde quando um punhado de comentários vagos sobre alguém cujo nome nem é revelado pode ser considerado uma previsão do futuro? Nas frases acima, assim como em muitos outros trechos que poderíamos pegar, Nostradamus faz afirmações sobre coisas que podem ser distorcidas ao bel-prazer da interpretação de pessoas ingênuas e impressionáveis.

Outro aspecto interessante das supostas profecias de Nostradamus é o fato de que, de acordo com tudo aquilo que já li e ouvi sobre a obra dele, suas "previsões" são sempre catastróficas, apocalípticas. Nunca ouvi falar de algo bom que Nostradamus tenha previsto. Pelo que me parece, ele sabia muito bem que as pessoas em geral têm uma espécie de fascínio macabro por hecatombes, e não por previsões positivas.

Não estou negando terminantemente a existência de pessoas sérias que fazem previsões e que podem, se for o caso, ser chamadas de profetas. Apenas estou dizendo que pessoas assim são raríssimas e que devemos ter muito cuidado para não sairmos por aí acreditando que o mundo vai acabar por causa das supostas previsões de cada novo profeta de araque que aparecer pela nossa frente.